Amor Selado                          

As cartas do nosso amor que por amizade selamos.

quinta-feira, 30 de março de 2006

Querido Pedro,
Eu caio tanto quanto tu, a diferença é que o peso que se abate sobre o meu coração não é suficiente para me enfraquecer as pernas.
As memórias têm em mim o efeito contrário, quase me fazem desfalecer. A força, essa, vem de dentro de mim e do passado, porque apesar de serem as memórias a magoarem-me, são também elas que me falam de ti, quase incessantemente.
Não to disse na última carta, mas fiquei feliz por teres caminhado na fonte. Muito feliz. Foi como que uma batalha interior que penso que acabaste por ganhar, e por isso, só posso estar orgulhosa de ti.
Não sei o que seria de nós se a Joana não estivesse sempre ao nosso lado, para nos fazer sorrir, chorar, ou até confrontar com a realidade que teimamos em camuflar com as cores da coragem ou mesmo da loucura.
Recordo tão bem aquela noite! Essa e todas as outras em que ao teu lado fui só o que o luar me pedia. Sabes, uma das coisas de que mais sinto falta é de me fazeres festinhas e de brincares com o meu cabelo, enquanto eu, com a cabeça no teu colo, acabava por adormecer.
Nem sei como vou conseguir abdicar das tuas cartas nestas duas semanas que aí vêm... vou ter que me ausentar em trabalho, mas levo-te comigo, tal como as cartas, atadas por um cordel velho, como nos filmes antigos que contigo via.
Desculpa-me a brevidade da carta, desculpa-me as poucas palavras, mas como alguém dizia: "o silêncio também é música" e por hoje, esta é a melodia que te posso oferecer.
Vou estar fora, em Espanha, mas levo um beijo teu no dedo polegar, para que possa senti-lo, sempre que quiser. E não quero saber se alguém pensar que, tal como os bébes, tenho a mania de chuchar no dedo, porque por ti eu não me importo de parecer louca, a loucura que me provocas é totalmente sã.

quarta-feira, 29 de março de 2006

Querida Helena,
Tu podes levantar-te, tu podes evitar cair inclusivé. Eu cai, cai na quinta e julguei faltarem-me as pernas, julguei-me para sempre preso a este chão. Mas as nossas memórias provaram-me o contrário, apoiaram-me enquanto me erguia. Se elas não servem para ti, procura então algo que te ajude a subir.
Já nem me lembrava de ter escrito que não podia andar na fonte, é outro dos problemas das cartas, tu podes ler as minhas vezes sem conta como eu leio as tuas, mas as palavras que digo só tu guardas e nunca as poderei reaver. A verdade é que pude, talvez conduzido pela loucura, pelo desespero que foi o último fim-de-semana, mas que agora sinto sereno e calmo.
Hoje estive com a Joana, junto ao mar com as ondas a rebentarem contra o carro dela, nós dentro do carro inventavamos a nossa tempestade. Discutimos arduamente, mas no fim acabamos por nos compreender mutuamente e isso acalmou-me infinitamente. De tal forma que até tive coragem de olhar para cima não receando a tua presença na janela.
Apesar de tudo vi a Lua, e ela trouxe-me uma noite de conversas eternas na tua varanda. Sentados nas cadeiras brancas de apanhar sol olhávamos a Lua e brincavamos com as estrelas. Nunca esquecerei essa noite por me lembrar claramente do que acendeu o rastilho na minha cabeça(não confundas com o coração!). Não te lembras? Consigo por-te a falar como num gravador: "Já viste como seria espetacular se namorassemos? Seriamos um tão bom casal, com discussões à séria mas com tantos sorrisos... É uma pena não gostarmos um do outro."
E assim me deixas de novo prostrado na nostalgia que me vem atacando de novo. Queria ceder-me a ela, mas se o fizer ela desaparece. Não é esse o preceito dela? E o teu também.
Beijo-te de olhos fechados ainda, não por ter medo de te ver, mas por gostar mais de evocar a tua imagem de sempre.

terça-feira, 28 de março de 2006

Querido Pedro,
Hoje sinto-me em ti, não quero respeitar as regras absurdas das cartas bem estruturadas, não quero perguntar como estás, não quero. Foi uma das melhores coisas que me ensinaste: quebrar regras.
Escrevo-te esta carta sentada na janela, uma perna dentro do quarto que já não reconheço como meu, outra perna sente o vento que traz em si o som do sentir. Vou-me deixando invadir pelo ar e quase flutuo.
Dizes que não queres pedir perdão por o que disseste ou fizeste, e ainda bem, jamais te perdoaria se o fizesses. Adoro-te assim, por seres a folha que me pousa no colo numa tarde de Verão em que as folhas devem estar bem agarradas à arvore, por teres a coragem de pousar sem medo que eu te lance ao chão. Por teres sido essa folha, por não teres medo da imagem que gosto de passar, mulher fria e firme, é que aprendi a amar cada recanto da tua alma, cada pedacinho de ar que és.
Não quero esquecer a Quinta-feira, não posso. Ao ponto que a loucura nos levou... abdicámos daquele sentimento irritante que nos corrói por dentro pela amizade e quase a atirámos pela janela, com a mesma violência com que quase atiraste a mesa.
Não te deixes assustar pela ausência duma carta, assusta-te antes com o peso da presença ausente.
Vou-te imaginando estes dias em que o som da razão não basta para me deter. Quase consigo ver-te agora, sentada no parapeito da janela: completamente afundado no puff azul, a sala iluminada apenas pela televisão, vejo-te puxar o fio que trazes ao peito, não consigo evitar sorrir e baixar a cabeça ao imaginar que vais passando o meu anel pelos teus lábios... é nestes momentos em que me sinto mesmo louca, ao tingir o mundo das cores que bem me apetece quando as mesmas cores que adoro são exageradamente berrantes e impossíveis de juntar sem que pareçam uma pintura dum miúdo de dois anos.
"Não andei descalço na fonte. Não fui capaz. Não pelo frio, mas porque depois seria incapaz de to contar, e teria de te mentir." Foi o que me disseste há pouco tempo antes... porque foste capaz de mo contar agora? O que mudou no teu sentir para que agora que me possas revelar a verdade?
Confesso que ao deixar a decisão da continuidade das cartas na tua mão me amedrontei. E se decidisses mesmo parar? O que seriam os dias sem o teu cheiro no papel?
Se soubesses a saudade, ou mesmo o desespero com que agarro o beijo que me mandas e o aperto contra o coração, talvez fujisses: sempre me disseste que odiavas o sorriso nos lábios de quem já não se pode levantar mais.



segunda-feira, 27 de março de 2006

Querida Helena,
Não vou pedir desculpa pelo que disse na última carta, não vou retirar o que disse, o que fiz e disse tem o seu tempo, lugar e razão que felizmente já não me são comuns. Guarda a última carta, queima-a, esquece a última Quinta-Feira ou lembra-te dela sempre que puseres na rua. Não te vou pedir nada do mesmo modo que não vou aceitar os teus pedidos em relação a isto.
Fui passar o fim-de semana com os meus pais e é graças a isso que ainda te consigo escrever. Ainda me roda a cabeça, ainda sinto o suor nas costas mas já consigo olhar-me ao espelho e ver o teu anel no meu peito. A minha mãe não me perguntou nada que não fosse necessário e isso deu-me a paz de espírito para poder organizar-me. O chão gelado da fonte contra os meus pés frios também me ajudou muito.
Não sei se te vou conseguir ver nos próximos tempos, mas o nosso passado deixa-me o sabor de certeza que tudo isto passará. O amor, o desejo,o desgosto, a tristeza e o ódio, tudo passará e deixará de novo a paisagem branca plena de neve. Eu assim acredito, por isso escrevo mais uma vez, e continuarei sempre que acreditar.
Chegar a casa e não ter uma carta tua assustou-me e alertou-me para o facto de já não saber viver sem a companhia. Ainda que a tua carne não se encolha entre os meus dedos, o teu cheiro estará sempre na minha mão.
Assim me despeço, breve e vago, para que sintas apenas o calor suficiente para aquecer sem queimar.
Um beijo teu, sempre teu.

domingo, 26 de março de 2006

Querido Pedro,
Desculpa-me a demora desta carta. Passei o fim-de semana perdida nas ruas do Porto, perdida em nós. Pensei mais do que queria, e talvez por isso, deva já pedir-te desculpas pelas minhas palavras e pelos sentimentos que elas poderão despertar em ti.
Também eu me sinto doente e cansada, também eu me pergunto se estas cartas que trocamos fazem sentido.
Sabes, não te vou julgar pelo que fizeste. "Fiquei feliz por teres vindo, mas nunca pensei que trouxesses o teu corpo contigo". Talvez agora percebas a minha loucura.
Eu encarreguei-me, sozinha, de me certificar de que as nossas vidas não se cruzavam, mas para isso,eu precisava de passar pelo sofrimento de te ver todos os dias.
A tua reacção não foi diferente da que imaginei, se um dia aquilo viesse a acontecer, porque te sei de cor. Sei que sempre tiveste problemas em encarar de frente o que não conseguias ter, e que, por isso mesmo, chegavas a não querer.
Dizes não saber até onde te levaram as pernas, pois bem, digo-to eu: Rio. Há semanas que, antes de ir trabalhar passo por lá, nem eu sei bem porquê. Nesse dia encontrei-te e meu coração parou.
Preocupei-me contigo, olhando-te dali, de dentro do carro. O teu cabelo desalinhado, a cara desesperada e os olhos esbugalhados olhando para quem passava pintavam-me o retrato que temia ver um dia.
Não sei se conseguirás um dia voltar a tolerar a minha presença, não sei se o queres, nem mesmo se eu o quero. Nas cartas que escrevemos, é rara a vez em que não invocamos palavras ou imagens do passado, mas quando ele se nos depara mesmo em frente aos olhos, não sabemos como lidar com ele.
Lembras-te, "Mesmo o que é passado existe na totalidade do seu presente se em vez do seu conteúdo nos concentarmos na intensidade"? É o sentido desta frase que nos vai dando sentido aos dias.
Pensei muito no que disseste sobre as cartas. Sei que nos traz sofrimento, muito. Sei também que, ao voltar da agência, corro na esperança de encontrar uma carta tua, uma carta que me traga um pouco de ti para junto de mim, sem remorsos nem culpas insuportáveis.
Nem sei porque te deixei o anel, talvez para que, ao pousares os olhos nele, os pouses também em mim. Talvez porque o meu egoísmo não aceite que me esqueças por um minuto sequer, embora passe muito tempo a dizer-te o contrário. Talvez porque quis que, ao contrario de mim, tivesses algo palpável daquela noite. Talvez...
Deixo agora a mais importante decisão nas tuas mãos: continuamos com esta loucura ou perdemos o único sopro que sempre nos uniu? Deixamos para trás o sofrimento que estas cartas nos provocam, ou deixamos tudo para trás? A decisão é tua, e eu vou saber respeitá-la, concordando com ela ou não.
Despeço-me, com palavras que não são minhas, repletas de sentimentos meus: "Ninguém pode aconselhar-te ou ajudar-te, ninguém. Só há uma maneira. Concentra-te em ti. Procura a razão que te leva a escrever. Descobre se morrerias se a possibilidade de escrever t6e fosse negada." Rainer Rilke

quinta-feira, 23 de março de 2006

Querida Helena,
Sento-me doente e cansado. Sofri um golpe duro de mais hoje. Quis responder à tua pergunta, quis poder preocupar-me. Por isso não te respondi ontem. Hoje de manhã sai de casa bem cedo, como tu viste. Sai mas não fui trabalhar. Fui criança, vais-mo gritar e eu sei. Escondi-me a ver a entrada do teu prédio, esperei que o teu corpo saisse do elevador. Quando saiu eu morri. As pernas tremiam, a vista turvou-se e não mais consegui olhar. Corri, corri numa direcção que não sabia qual, só a sabia longe de ti. E tremia, todo eu num medo incessante. Não fui trabalhar, não sei onde fui. Só quando as pernas não podiam mais retornei a casa, mas a olhar a cada face temendo ser a tua.
Agora que as horas já lavaram alguma da dor lancinante que me atingiu sobrou a tristeza. Não sei se estás louca, não o posso avaliar porque não sei se a loucura não se apoderou de mim também. Isto foi tudo uma loucura! A nossa noite, a nossa separação, estas cartas que vamos arremessando sem saber porquê. Maldito porquê, malditas cartas, maldito beijo.
Estou triste, desesperado por me teres atingido de tal forma. Pergunto-me incessantemente se alguma vez te vou conseguir olhar de novo, se algum dia tolerarei a tua presença. As provas que hoje o meu corpo me apresentou dizem-me que não. Dizem-me que tudo isto é vão, que nada faz sentido, que as cartas são só mais sofrimento, e mais e mais. Já nem sei o que quero fazer.
O que vês na minha janela não é o teu anel mas sim um invólucro amarrotado da minha desarrumação. O teu anel está no meu peito de onde não saiu desde que descobri que o tinhas deixado no meu dedo aquela noite.
Já nem sei porque o uso, não sei porque te escrevo, já nem sei porque te beijo noite após noite, já nem sei porque te digo

terça-feira, 21 de março de 2006

Querido Pedro,
Não te queria responder. Queria deixar-te a desesperar com a ausência de uma carta, obrigar-te a olhar pela janela para veres a luz acesa, obrigar-te a interrogar o que de tão importante estou a fazer para nem sequer te dar uma resposta, por curta que seja.
Respondo-te apenas e unicamente pelo mesmo motivo que me levou a atirar-me para o chão no outro dia.
Na minha última carta relembrei-te os insultos que ofereciamos um ao outro quando uma discussão rebentava sobre as nossas cabeças. Chamava-te egoísta, e volto a fazê-lo agora e quase me apetece bater-te por isso.
Os meus receios não são fingidos, eu tenho medo de estar louca. Todos me olham como tal, o olhar dos que me rodeiam grita "Não liguem, ela está louca sabem?". Ignoram-me e tu ignoraste-me também.
Tu, que juraste nunca ser um deles. Tu que juraste nunca pertencer ao mundo enfeitado de flores de plástico em que os outros vivem. Mas foi uma flor de plástico a tua última carta.
Hoje sou eu que te interrogo como o garoto da televisão "Porquê?", porque é que ignoras os medos que me consomem? Porque me falas do cobertor vermelho quando tudo o que vejo se tingiu irremediavelmente de um encarnado que me fere e quase cega os olhos? Porque me ignoras como se eu realmente fosse louca?
Quanto ao almoço de família, todos os olhares, excepto o da minha querida avó, me gritavam que mereço toda a minha angústia. Porque sou uma pessoa má, tenho a sorte de ter uma pessoa boa como tu e ainda por cima rejeita a sorte que tem. Odeio-os, a todos (claro que a avó não se insere neste grupo). Porque pensam que família é aquela coisa que aparece nas fotografias em ocasiões como um casamento, ou qualquer coisa que se assemelhe, e onde possam comer de graça. Odeio-os porque nunca me souberam amar, porque só aprenderam a amar o nosso amor quando já não tinham que suportar ao vivo a nossa felicidade.
Detesto o mundo em que fui lançada à minha sorte. Detesto pensar na minha felicidade enquanto música numa outra vida. Detesto não poder ser sempre feita de compassos pausas e emoções prazerozas.
Detesto a maneira como fecho os olhos cada vez que te despedes com um beijo, e detesto ver o meu anel reluzir no parapeito da tua janela. Tira-o daí, por favor... está a deixar-me louca.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Querida Helena,
Hoje escrevo-te aninhado no sofá com o cobertor vermelho a cobrir-me as pernas e a melancolia a cobrir-me a consciência. A chuva vai compassando o piano que que sai do negro da coluna. Toda esta placidez e quando penso que estivemos quase a cruzarmo-nos o meu coração agita-se e o fogo nasce na minha face. A melancolia traz os porquês. E o pior é não lhe saber responder. Ela pergunta insitentemente como o puto da televisão. "Porquê?" -Medo talvez "Porquê?" -porque encontrá-la é tudo o que eu não preciso agora. "Porquê?" - porque isso seria ter de ver se a casa resiste ao furacão e não posso viver sem casa agora. Acabo a conversa assim com uma metáfora e ela cala-se roendo o osso procurando o pedacinho de carne.
Agora percebo porque me senti mal perto da Joana. Tenho que falar com ela, não quero perder a amizade dela. Vou-lhe pedir que nos deixe a um canto, que faça de conta que tudo não se passa porque ela como toda a gente não vai ser capaz de compreender a nossa separação. E nós já não podemos com mais porquês.Pelo menos eu.Estou farto dos meus, dos da minha mãe, dos dos nossos amigos.
Fico contente com as primeiras palavras do Gui e estou morto por o ver. Espero que o teu almoço em casa da tua avó tenha sido pacífico pelo menos. Eu fui tomar café com o Rodrigo no sábado depois de almoço e cheguei a casa já noite dentro. É por isso que é espetacular falar com ele. Podemos passar horas numa mesa sem o assunto acabar, e sem ter conversas dolorosas. Já tinha saudades daquelas conversas. Levantei-me cedo no domingo porque fui almoçar com os meus tios á Póvoa. Não me arriscava a chegar atrasado e a ouvir o habitual sermão do meu tio. Foi agradável, a distância do Porto fez-me bem, e o mar raivoso distrai-me o coração. Vou passar a fugir nos domingos mais vezes.
Despeço-me ainda com o cobertor nos joelhos mas com a melancolia atirada a um canto. As saudades? Essas ainda me aquecem o peito. Um beijo meu amor.

domingo, 19 de março de 2006

Querido Pedro,
Não me senti minimamente provocada pelo poema que partilhaste comigo. Sinto-me lisonjeda por teres partilhado comigo as palavras que só suportas sendo declamadas.
Ontem saí com a Joana, não fomos a um bar nem a nenhum lugar semelhante. Pensando bem, mal chegámos a sair. Pensando bem, os caminhos do jardim dela não se parecem com uma saída. Falámos muito sobre muitas coisas.
É obvio que, mais tarde ou mais cedo, te tornaste no tema de conversa. Há algo que ela me disse que me ecoa pelo peito e que queima o ar que respiro. Sabes como é a Joana; firme, directa e simples. "Se por uma vez na vida deixasses de chamar coragem à cobardia...", achas que ela tem razão? Achas que pintamos o nosso medo com as cores da razão?
Assustaste-me hoje. Não é teu hábito, ao Domingo, estar a pé as nove da manhã, muitos menos na rua. Passar-se o mesmo comigo já não é estranho.
Sabes, todos as manhãs te olho pela janela e espero que saias para depois sair eu e nossos caminhos não se cruzarem. Esta manhã, como todos os Domingos, achei que não seria necessário, que estarias a dormir, recuperando de uma noite com os amigos. Mas desta vez não.
Ia sair do prédio quando te vi na rua. Atabalhoadamente atirei-me para o lado de lá da porta e caí. O velho porteiro ficou a olhar para mim como se eu fosse louca, nem sequer me tentou ajudar, fitou-me apenas com aqueles enormes e trémulos olhos cinzentos como se realmente eu fosse uma aberração da natureza. Mas não foi o primeiro. Isto tem-me acontecido frequentemente, e isso assusta-me, por mais que me custe a admiti-lo. Tenho medo de que os olhares deles tenham razão.
Lembras-te de quando discutíamos? Era rara a discussão em que não me chamasses louca, tal com era rara a discussão em que eu não te chamasse egoísta. E isto é que me preocupa. Se fossem apenas os outros a julgarem-me louca, eu conseguiria fazer a minha vida normalmente, mas a possibilidade da visão deles ser partilhada contigo deixa-me apavorada.
O Gui já fala! A minha irmã está eufórica. A primeira palavra (talvez chamar-lhe som fosse o mais acertado) foi "Ena", ora bem, isto para mim é o diminutivo de Helena, mas a minha irmã não me parece convencida.
Tenho que me despedir agora, vou almoçar a casa da minha avó e já vou atrasada. Devo chegar tarde, não te preocupes pela escuridão vinda da minha casa. Passo-te as mãos pelos olhos e beijo-te a testa apertando-te bem contra mim, abraço-te e deixo que sintas o meu coração dentro do teu peito.

sexta-feira, 17 de março de 2006

Querida Helena,
Hoje não vou escrever uma carta. Nunca soube como se fazia mas parece-me que escrever palavras que não são minhas, não é de todo o formato de uma carta. Ouvia um poema, sabes bem que tem de ser ouvidos para que os sinta, sobre o cigarro. Esse teu vício triste e negro que insistes em manter. Enquanto ouvia apercebi-me do que te havia tornado exactamente isso, um cigarro na minha vida que fumo repetidamente e não me dá descanço. Eis o teu poema então.

Volutas de Humo
Salvador Angel Molinari (alias Tito)


Volutas de humo que flotan
Alrededor de mi cuerpo
Con que simpleza se desintegran
En cuanto las toca el viento
Conversar, conversar con vos quisiera
Decirte, decirte lo que yo siento...
¿Por qué siempre te necesito
Cuánto más solo me encuentro?
Éste, éste, tu encanto fatal
Es lo único que no entiendo
Sabiendo que, poco a poco
Mi vida estás consumiendo...
Cigarrillo forrado de blanco
El color de la pureza y,
¿Qué llevás en el alma? Lo negro...
¡Cuántos somos los que nos aferramos
A tus pitadas profundas y exhalamos de una vez!
(Mientras tragamos tu veneno...).
Apartarte, apartarte yo quisiera
Pero sé que no puedo
Porque en cada devenir de esta vida que padecemos
En mi propia cobardía más me aferro
A tu maldito veneno...
Te tomé como juguete de purrete
Y hoy, que sos parte mía
No sabés cuánto me arrepiento
Ya sin vos, ya sin vos no sé vivir
Porque sos mi companero
Ese amigo que busqué en la noche solitaria
Mientras contemplaba los cielos
Y que hablaba de mis sueños, mis tristezas y alegrías
Mientras vos, poco a poco
En mis dedos te consumías
Y así, así me quitaste el aliento
No me dejás respirar
Manchaste todos mis dedos
Y por dentro devoraste gran parte de mi cuerpo...
Pero, ¿qué te puedo reprochar?
Si fuiste mi compañero...
Y otra vez, otra vez te vuelvo a encender
Y mientras miro tus volutas de humo
Que envuelven todo mi cuerpo
Te tengo que decir, a mi pesar
Que seguís siendo mi mejor compañero...

Espero que o compreendas e não o tomes como uma provocação. Despeço-me assim, com as palavras curtas e o carinho fechado na mão que insististe em apertar.

quinta-feira, 16 de março de 2006

Querido Pedro,
Quero começar por te pedir desculpa pela demora desta carta. Agora que voltei ao trabalho, o Dr. Cerqueira entregou-me um projecto importantíssimo e andei aterefada com ele nestes últimos dias.Pelo que me tens dito parece que também andas atolado em trabalho, por isso sei que compreenderás.
Estou bem, o regresso não me fez mal algum. Sabes o quanto adoro sentir-me útil. Sabes o quanto odeio passar o dia sem fazer nada de interessante.
As tuas comparações em relação à musica e a mim lembraram-me duma conversa que tivemos uma vez, precisamente no b-flat. Eu dizia-te que se a reencarnação existisse mesmo, noutra vida eu teria sido uma música, quando ouviste isto riste-te com vontade e tentaste convercer-me de que para um ser vivo reencarnar teria que ser num outro ser vivo. Expliquei-te então que a musica fazia parte de mim, da minha vida e que se havia algo capaz de me fazer sentir viva era a musica. Desde então penso que verdadeiramente aceitaste o facto de eu poder ter sido uma música numa outra vida.
Viste os meus olhos passear, mas não percebeste que eram a ti que eles realmente desejavam ver, apesar de saber que não é o mais correcto a fazer. Viste as minhas mãos, mas não percebeste que era em ti que elas queriam pousar. O desejo da minha boca era sentir o calor da tua.
Não precisas de saber quando voltarás a mim, até porque nem sabemos bem se alguma vez isso acontecerá. Mas eu juro que vou tentar permanecer em ti, como uma amiga com quem sempre podes contar. Nunca sentirei nojo de ti, nem um pouco, e duvido que a Joana alguma vez o sinta. Acho que te faria bem desabafar com alguém, é o que tenho feito com a minha irmã. Sabes como é (um pouco injusto, sem dúvida), os momentos maus são mais fáceis de suportar quando são partilhados com alguém.
Ontem ocorreu-me uma ideia perturbadora. Quando eu for velhinha, passar os dias inteiros à lareira, mesmo no Verão, e alguém me perguntar como foi a minha história com o grande amor da minha vida eu digo o quê? Digo o quão maravilhoso foi o início e conto como foi o fim? Será alguém capazde perceber? Será alguém capaz de suportar?
Ofereço-te os meus olhos, para que, todas as manhãs, quando te vires ao espelho, também eu te possa ver; e aperto-te a mão até te doer, até ficares com marcas nos dedos, para que me sintas durante muito tempo.

segunda-feira, 13 de março de 2006

Querida Helena,
Escrevo-te cansado. Fisica e psicologicamente. A correria da cabeça e o não descanço das pernas conferem-me um estado de completo cansaço. Desculpa-me desde já por todas as incoerencias e erros que por esta carta se espalhem.
Fiquei preocupado por tu não me responderes, mas ao ver a tua luz desligada todo o fim-de semana julguei-te longe. Não sabia tão grave a tua ausência, e confesso ter tido o impulso de saltar porta fora. Espero que estejas melhor. Espero que estejas bem. Espero que o regresso não te tenha feito mal.
A doce lembrança das noites de jazz veio contaminar o cansaço e a melancolia instalou-se e não a consigo escorrassar. É inevitável que a minha solidão e a saudade do jazz e de ti se misturem numa visão assustadora. Vejo teus olhos a passear, graves como o contrabaixo, certos e atentos. Graves e claros mantendo a melodia. As tuas mãos a tamborilarem como uma bateria, cheia de solos e improvisos, de magia e de electricidade. A tua boca, largando notas ao acaso, mas tão certas, tão harmoniosas com o resto da música. Tão estranhamente agudas que entram pelo peito adentro sem pedir licensa, tão imensamente graves que deixam o sabor de ti escoando por todo o corpo.Não sei quando voltarei ao b-flat. Não sei quando voltarei a ti. Há meses que não falo com o Rodrigo, há anos que não te vejo.
Estás certa(para não variar). Estou farto de sentimentos. Mas se não tos dou a ti a quem hei-de entristecer? A nossa amizade sempre esteve cheia dos sentimentos que contavamos um ao outro, antes de os sentimentos serem um pelo outro. Não consigo abrir-me à Joana, sinto que ela não me vai conseguir ver sem ter nojo. Sinto que vou ter nojo de ela me ver. Deixo-lhe palavras cortadas a meio, enigmas sentimentais que não têm uma resposta certa.
Tenta responder-me rápido desta vez para pelo menos me sossegares a tua doença. Não aguento pensar que possas estar desmaiada no quarto onde mantêns a luz acesa a esta hora.
Um doce cruzar dos meus dedos nos teus, e não te esqueças que ainda que presos na minha mão os podes usar.

domingo, 12 de março de 2006

Querido Pedro,
Sempre acreditei nas amizades, mesmo com músicas. Há tantas que me consolam e me acalentam os braços nesta fase. Há mortes necessárias, não há mal algum em assassinar o tirano para salvar o inocente. O tirano é o amor e jamais nos descuidaremos ao ponto de sacrificar a amizade, se tal acontecesse, com ela eu morreria também, porque é aquilo que me faz levantar e conseguir por-me de pé.
Desculpa a demora na resposta, mas este fim-de-semana correu-me pior do que queria. Como se já não me bastasse a sensação de acordar cansada e andar quase moribunda pelas ruas, tive uma quebra de tensão e, para não variar, acabei por perder os sentidos.
Encontrou-me em casa a minha irmã, a quem, felizmente havia emprestado a chave. Fui para o hospital e a minha mãe, naquela preocupação desesperante veio-me buscar e fui para juntos dos meus pais estes dias.
Voltei hoje, amanhã volto ao trabalho, e não fiz algumas das "coisinhas" que queria. Não consegui ler nenhum livro, mas deixei as pegadas na areia e dancei. Fui ver uma actuação de jazz ao vivo, naquele bar onde íamos todas as quintas-feira. Como gostavas de jazz... ainda hesitei em entrar, tive medo que também tu quisesses descontair com os sons que tanto apreciamos. Acabei por entrar, varrendo a sala com os olhos verdes, "verdes como uma folha que começa a secar", como tantas que vimos nas tardes de Outono. Não estavas, respirei de alívio e sentei-me.
Sentei-me e assim fiquei até que o nosso tão bem conhecido Rodrigo me arrancou da cadeira e me obrigou a dançar com a mesma vivacidade que o caracteriza. Fez-me bem, sem dúvida alguma.
Fico feliz por saber que arrancaste um sorriso ao casmurro do teu patrão, mas não quero que te mates a trabalhar, foi o que eu fiz e acabou por não correr nada bem.
Já conversei com a minha avó, mas não tenciono contar-te nem uma palavra da conversa. O que mantém a minha avó de pé são os sentimentos que foi acumulando dentro dela. Estás farto de sentimentos, falar-te deles só te irritaria e isso eu não quero. Se bem que não percebo como podes querer que te fale da minha vida sem incluir sentimentos nela.
Sempre foste assim, essa tua capacidade angustiante de saber viver (ou fingir saber) viver sem sentir dá-me vontade de te bater. Sente Pedro, sente as folhas que caem, o vento que passa, sente a minha mão na tua em despedida.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Querida Helena,
Antes de começar a escrever pus as Paredes a tocar para mim. Pois é, não gostas e eu sei-o, mas preciso de algo que me serene para que não te destrua a casa. Juro que vou tentar. A música é minha companheira há muitos anos mas na solidão a que me remeti tornou-se uma amizade presente e ela agora ouve-me também. Toca agora Sede e Morte. Tudo para me apontar as verdades que me veem atormentado. Temos sede. Sede dos sentimentos um do outro, da presença, do amor, do ódio do carinho. Não, não temos sede do amor. Foi para acabar com ele que o papel nos veio acompanhar.
Morte. Desceu sobre a nossa amizade de foice em riste e está pronta a levá-la se nos descuidamos. E temo-nos descuidado, falamos só de sentimentos e esquecemos que há toda uma vida para ser contada, todo um mundo para mostramos. Isto traz-me uma imagem, sinto-me como se estivessemos em postos oposto do globo, e no papel contassemos o céu de estrelas que cada um vê. Mas perdemo-nos nas arvores, geladas, de casca dura, secas e mirradas e que à minima chama ardem prontamente.Chega de àrvores, chega de metáforas. São da tua avó as metáforas não é? Das recordações mais antigas que tenho é a de tu me dizeres que as metáforas só a ela pertenciam quando ousei lançar-te uma. Há quantos anos? Já lhes perdi a conta.
Espero que o descanço te tenha feito bem e que tenhas aproveitado para fazer aquelas coisinhas que tanto gostas quando estás de férias. Ler um livro com o sol, num qualquer banco de jardim, percorrer a areia molhada deixando nas pegadas o sinal da tua existência. Descançaste?
Eu tenho-me cansado. Descobri que a melhor maneira de me abstrair da solidão é cansando-me. Faço mil esboços para cada projecto, passo horas fechado na sala do atelier. Já me valeu um sorriso do chefão, e parece aliviar a dor.
Tenho curiosidade em saber se já falaste com a tua avó. Pareces ter esquecido a minha conversa com ela, mas é algo que circula repetidamente na minha cabeça. Tenho estado com a Joana, ela disse-me que não quiseste estar com ela, que querias a semana para estar sozinha e descançar. Disse-me que inclusivé tinhas o telémovel desligado grande parte do dia. Esta última custou-me a acreditar e por pouco não quebrei a regra numero dois e não te liguei para me certificar que não me mentia a Joana. Mas fiquei contente, até orgulhoso. Acho que finalmente conseguiste superar um vicio ainda que pelas piores razões. Talvez consigas deixar de fumar também...
O cansaço já se apodera de mim, e peço desculpa pela manta de retalhos que se tornou esta carta. O senhor Paredes já toca demasiado rapido lembrando-me que o sono me faz falta.
Despeço-me como sempre com um beijo, desta vez na face. Temia faze-lo por sentir a proximidade com a tua boca, mas hoje permito-me a essa audácia porque sei que não tenho já forças para a alcançar.

quarta-feira, 8 de março de 2006

Querido Pedro,
Sei que me amas, sei que me odeias, ambos os sentimentos são, inevitavelmente, companheiros, afinal, qual seria a lógica do amor sem o ódio? A mesa não chegou cá, mas tu chegaste ao ponto de a atirar, a prová-lo está a tua última carta, estra provocou mais estragos no meu apartamento do que possas alguma vez imaginar.
Não podemos voltar para trás, mas podemos olhar e recordar. Nada do que vivemos poderá ser apagado e não é tentando esquecê-lo que vamos esquecer o que sentimos, para isso temos que lembrar, e aceitar que acabou.
Faço-te isto porque te adoro, como amante e como amigo. Faço-te isto porque apesar de alguma possível frieza (leia-se firmeza) eu nunca deixei de ser humana. Aquele Rio faz parte da nossa vida, não vale a pena mentir a nós próprios e pensar que ele nunca existiu. Aconteceu Pedro, não há nada que possas fazer para mudar isso, nem eu te perdoaria se me tentasses convencer do contrário.
Não posso esquecer a amizade antes daquele dia, sabes tão bem quanto eu que é essa amizade que nos mantém em contacto. É essa amizade que me faz levantar da cama e encarar o mundo que me bombardeia com perguntas em relação a ti.
Não digas que não sabes fazer nada bem sem mim, é mentira. Magoas-me, fazes-me sorrir, chorar, gritar, e consegues fazê-lo muito bem.
Não te preocupes mais, já fui ao médico. Não passa de um esgotamento. Já o devia prever, disse-te que o trabalho na agencia era mais que muito e que só de olhar para os projectos espalhados pela secretária já me doía a cabeça. Enfim, vou aproveitar esta semana para descansar, esta semana e nem mais um dia, sabes que não gosto de meter baixa por tudo e por nada. Para além disso, o "logo se vê" do Dr. Cerqueira não me sai da cabeça, perder o emprego seria a gota de água para mim.
Sei bem que já passou um mês desde a primeira carta, sei bem que nunca percebeste bem como se escreve uma, mas também não me interessa. Nenhum de nós segue outras regras senão as nossas. Foi em Janeiro que nos separámos e desde Janeiro que não sei bem o que faço, também eu sinto a tua falta, também eu adormeço agarrada á almofada na esperança de te sentir.
Sei que não gostas de poesia, sei que só a sabes apreciar quando declamada em voz alta, mas a minha voz não pode chegar até ti. Ofereço-te palavras de Pablo Neruda,

"Desgraças do mês de Janeiro quando o indiferente
meio-dia instaura a sua equação no céu,
um ouro duro como o vinho duma taça cheia
enche a terra até aos seus limites azuis.

Desgraças deste tempo semelhante a uvas
pequenas que juntaram verde amargo,
confusas, escondidas lágrimas dos dias,
até que a intempérie divulga os seus cachos.

Sim, germes, dores, tudo o que palpita
aterrado, à luz crepitante de Janeiro,
amaducerá, arderá como arderam os frutos.

Divididos estarão os pesares: a alma
soprará como o vento, e a morada
ficará limpa com o pão fresco na mesa"

Despeço-me, e fico aguardando ansiosamente pelas tuas palavras, pelo teu cheiro no papel, pelo sentir, pela Amizade.

segunda-feira, 6 de março de 2006

Querida Helena,
As vezes odeio-te. E não foram poucas as vezes que me apeteceu atirar uma mesa até à tua janela durante este mês. Não chegaria lá. Nem a mesa, nem eu a esse ponto. Teimas em me mostrar a outra estrada enquanto caminhamos, sabendo que não podemos voltar atrás. Eu quero. Desafiar o trânsito, correr para trás e fingir que foi aquele o caminho que sempre quis tomar. Mas tu manténs-me preso a esta estrada que não quero percorrer e apontas-me o caminho que desejo. Outro dia disseste-me que não pensasse, que perguntasse. Pois bem. Eu pergunto-te tão directamente quanto possivel: Porque me fazes isto Helena?
Porque não te lembras tu de toda a amizade antes desse dia? Porque insistes em lembrar-me o amor quando queremos resguardar a amizade?
Perguntaste-me como? A resposta não podia ser mais simples: 3 Esquerdo Traseiras. Mas não, não pode ser. Tomamos uma decisão. Eu não te consigo explicar como, se eu mesmo não sei como me vou arrastando nas ruas, riscando cores no atelier e vegetando no sofá. Não sei fazer nada direito sem ti. Por isso não sei explicar como has-de fazer.
Não voltei ao rio assim como não voltei à fonte. Mas tu fizeste-me voltar lá, arrastaste-me e a experiencia não foi boa. Pelo menos estudei em pormenor o tecto do meu quarto. Vou pintar algo lá. Algo que me faça companhia durante a noite, algo que traga sorrisos e borboletas. Tu.
Já foste ao médico? Que te disse? Estou mesmo preocupado, tenho medo no que te possa acontecer, tenho medo da minha reacção ao que te possa acontecer. Tenho medo da tua reacção à minha reacção. Não devia ter medo eu sei. Mas quando não o consigo enxutar durante a noite não posso deixar de tentar espalha-lo nesta carta.
Não sei se reparaste mas fez ontem um mês que escrevi a primeira carta. Ainda não aprendi como se escreve uma, mas continuo sem manter o principio base da despedida. Não posso deixar de te beijar no fim contudo. Beijo já a almofada por falta do teu carinho. Trocava os lábios por uma tarde em tua casa vendo um filme, os teus cabelos fogo nas minhas mãos e tua cabeça no meu colo. Mas não tenho. Contento-me por isso por te beijar em silêncio. E não há nada mais triste.

domingo, 5 de março de 2006

Querido Pedro,
Desculpa-me, mas não o consegui evitar, "escrevo-te do lugar de onde humilhámos o Universo", estou sentada na margem do Rio e vou balançando os pés ao compasso de uma música que nunca ouvi.
Agora que os dias começam a trazer consigo o calor dos sentidos, aprisiono a agradável aragem que passa por mim dentro do meu peito e revejo o filme da nossa última noite com os olhos fechados. Rodeados por aqueles que nos são mais queridos e por desconhecidos, cores garridas que chegavam a ferir-nos os olhos, sorrisos calorosos numa noite de Inverno.
Enquanto todos se divertiam, pousaste a mão na minha cintura e trouxeste-me até aqui, exactamente onde estou sentada. Pegaste na minha mão e eu deixei o fim da eternidade na tua; sorrimos, e retornámos para junto dos outros. Por vezes parávamos no meio da confusão e beijávamo-nos sem vergonha. À nossa volta cantavam e dançavam, estavam felizes e nós fomos felizes uma última vez com eles.
Embora não te tenhas apercebido, eu soube, desde o momento em que, sentada no meio da rua, te vi por entre a multidão, que aquela noite seria como nunca e sempre.Sabia que seria única, mais do que isso, a última. Por isso te dei a mão, e tu, pelo mesmo motivo me entregaste o coração.Não conseguiamos parar de sorrir, mesmo por entre os beijos; não só pelos efeitos obvios do já muito álcool que nos corria nas veias, mas também pelo amor e pela amizade.
Pelo amor que sentiamos há muito e que víamos como eterno, embora efémero; pela amizade que nos uniria muito para além dessa noite.Quis pedir-te desculpa, nem sei bem por o quê. Talvez por me ter apaixonado por ti, ou talvez porque não me afastei quando esse sentimento começou a surgir em mim. Não tive coragem, era a última noite e não queria falar-te disso.
Mal reconheci os meus olhos nessa noite, embora feliz, uma estranha sombra pairava sobre eles como nunca antes. Do fundo de mim, sei o papel que desempenhou naquela noite com sabor a madrugada, era apenas a consciência sempre presente, para me relembrar que as regras eram simples: " Já decidiram que esta noite seria a última, não vale tentar reconsiderar, a escolha está feita.".Não tenho objecto algum que me recorde daquela noite, restou-me apenas a memória, talvez já deturpada pelo tempo e pelos sonhos, mas o brilho do teu olhar nada poderá alterar, porque esse olhar esteve comigo desde então, numa das margens do rio até hoje.
Fugimos a meio da noite e refugiámo-nos num pequeno barco que não nos pertencia, foi aí que vimos o último nascer do sol juntos, tu bricavas com a minha mão e eu, com a cabeça pousada no teu ombro, ia sentindo o teu cheiro, saboreando todos os sentidos.
Um beijo, um abraço, um longo olhar e a desesperada despedida.Não, não vivemos felizes para sempre, não vivemos o "para sempre" juntos, mas vives até hoje em mim e sei que vivo em ti. Mas nada disso importa, porque aquela noite foi sempre nossa, só nossa.
Queria dizer-te tantas coisas... mas não sei onde perdi as palavras. Como conseguirei alguma vez dizer-te que a minha cabeça no teu ombro foi um dos melhores momentos que já vivi? Como conseguirei explicar-te que o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? Como Pedro, como?

sábado, 4 de março de 2006

Querida Helena,
As chamas da tua carta não me deixaram indiferente, bem sei que não queres que fique preocupado mas as notícias que me deixas deixam em mim a inquietação que à muito venho sentindo. Espero que o médico não traga más noticias e que tudo não passe de cansaço. Aproveita a semana para descançar, vai até ao mar repousa nele as tuas preocupações e liberta-te do fardo do emprego. Bem sei que largar algo tão importante para ti é muito difícil mas se não descansares esta semana vais ter de descançar um mês. Não vás ao rio. É tudo o que te peço.
Pediste-me que fosse ver a tua avó. Fui. Não foi fácil. Só a viagem de comboio e todo o cenário que encontrei me gritavam que não pertencia ali, pelo menos sem ti. Prossegui, por respeito a ti e à tua avó. Ao bater na porta que me parecia enorme quase fugi de medo. Não fora a calma e carinhosa face da tua avó a sorrir-me tinha-o feito. Entrei e conseguindo resistir às vontades da tua avó para tomarmos chá prosseguimos para o jardim. O sol tornava todo o ambiente verde ao reflectir-se nas folhas. Sentamo-nos junto da trepadeira e a tua avó pôs o xaile sobre as pernas e eu gelei o rosto para que não se derretesse perante a tua ausência. Ao contrário de ti não me sinto obrigado a deixar a nossa conversa naquele jardim, ao invés sinto que tens que a ouvir. Sei que a tua avó nunca ta contaria. Comecei por lhe perguntar sobre ti, sobre o que ela viu em ti. Ela disse-me o que eu sabia. Viu-te no rosto as olheiras do sofrimento e da dor. Mas viu também o nariz erguido e a testa lisa de decisão e disse-me que não irias voltar atrás. Ouvir aquilo da boca dela costou mais que mil cartas geladas de ti. Como se a idade lhe desse um peso de certeza, como um velho mestre traçando com certeza o percurso do seu discípulo. A minha cara deixou-se trair e os sentimentos transbodaram dela. A tua avó pegou na minha mão e perguntou-me quem tinha decidido o nosso destino. Eu respondi-lhe que fomos os dois, que nenhum tinha mais culpa e que ambos o fizeramos sem pressões. Mas a face macia dela tocou-me o coração e não consegui deixar de lhe dizer que apesar de termos ambos culpa, a minha era uma arrependida, que o fizera e faço, mas que não residia mais em mim essa vontade. A tua avó respondeu como só ela consegue: "Se dois gatunos cometerem um crime ainda que um chore aquando da prisão ambos vão para a cadeia. Já és crescidinho Pedro e não precisas que te diga que se tomaste uma decisão não podes voltar atrás. E tu conheces a Helena tão bem como eu, e sabes que ela por muito que lhe doa nunca te vai dizer para voltarem atrás." A minha cabeça baixou-se e não consegui dizer nem mais uma palavra para além das cordialidades à saída. A tua avó beijou-me a testa e durante toda a viagem senti o beijo a correr na minha cabeça com as suas palavras a ecoarem repetidamente.
Agora que te escrevo e enquanto a chuva lambe a minha janela vou-te dizer o que a ela não lhe disse. As grades da prisão não duram para sempre e quando sair não vou voltar a cometer o mesmo crime. Desculpa se te choco, desculpa se te desiludo, mas acho que mereces saber que os meus braços não se vão baixar. Não te preocupes que não te vou bater à porta esperando que me deixes entrar. Vou cumprir a minha pena, mas chegará a altura de sair, e quando essa altura chegar eu vou avisar-te.
Espero sinceramente que as minhas palavras não te inquietem, e que melhores. Hoje durmo na sala para que possas descançar os olhos, e com alguma sorte a cabeça. Beijo-te a mão com o olhar na tua face, porque se te beijar a testa já não te vejo.

sexta-feira, 3 de março de 2006

Querido Pedro,
Não quero que fiques preocupado comigo, nunca quis. Não sou aquela espécie de pessoa que se sente bem por saber que alguém quer saber se estou bem ou não. Sou fumadora compulsiva, só a avó consegue fazer-me esmagar um cigarro.
Soube, desde o momento em que a avó me disse que queria falar contigo, que esse encontro seria lá em casa. Se não fosse a minha seria capaz de apostar que essa conversa seria das mais enfadonhas que se pode ter. Mas não, é a minha avó, sei que tem guardadas para ti as palavras mais sábias. Quase consigo imaginar a cena, aposto que te vai fazer um chazinho e depois levar-te-á para o jardim.
As coisas na agência não vão muito bem. Hoje, o Dr. Cerqueira, meu patrão, chamou-me ao seu gabinete. Quando abri a porta e vi o seu velho wiakie servido para dois, soube logo que ia ter problemas. A conversa resume-se a isto: ele acha que estou a atravessar uma fase "pouco produtiva", que é melhor eu tirar uma semana "para repouso" , depois "logo se vê". Nem me queixei, a semana vem a calhar muito bem.
Vou aproveitar esta semana, precisamente para ir ao médico. Não me tenho sentido bem... são só dores esporádicas, não deve ser nada de especial mas em todo o caso mais vale prevenir do que remediar.
Odeio esta tua mania de tentar saber sempre o que eu quero saber. Não seria muito mais fácil perguntar? Não seria muito mais fácil aprender? Não quero saber da loira, nem da Sofia, nem da fonte. Só quero saber de ti.
Despeço-me com um beijo em labaredas, selando esta carta, selando este amor.

quinta-feira, 2 de março de 2006

Querida Helena,
A carta que hoje li deixou-me mais que preocupado. Confesso que fiquei mais que preocupado com o que disseste no final da última carta. Queria poder ir aí e arrancar-te o cigarro das mãos, colar-te o sorriso na face e pentear-te o cabelo com festinhas. Não podemos eu sei. Promete-me que tentas faze-lo sozinha, pelo menos tenta levantar-te desse chão.
Liguei para a tua avó ao bocadinho quando recebi a tua carta. Apesar das minhas insistencia para irmos a algum sitio ela não cedeu um milimetro e obrigou-me a passar por casa dela amanhã. Espero que me receba com o sorriso que ela tem na minha memória, mas se assim não for eu compreendo, tanto por ti como por ela.
Estou a sorrir, sabes porquê? Porque estou-te a imaginar a ler esta carta impacientemente para encontrar algo sobre a loira. Só me dá vontade de rir quando penso no que tu pensaste. A loira com quem tu me viste entrar no prédio era a simpática vizinha do 2º esquerdo que tu tão bem conheces. Algo te deve ter toldado a vista concerteza, e travo o pensamento que procura saber o quê.
Vou pedir à tua irmã que te vá ver mais vezes. Não consigo pensar que estejas assim. Eu pedia à Joana, mas acho que da última vez não foste muito justa com ela e ela não merece ser posta na linha de fogo.
Quanto à Sofia, eu não te quis mostrar nada Helena, nunca. Eu contei-te o que se passou como sempre faço, não o fiz com segundas intenções, não o fiz para te magoar. Se isso aconteceu só tenho que te pedir desculpa e prometer que não vou fazê-lo de novo.Lamento que tenhas ficado triste com o que te contei da fonte, lamento trazer mais um golpe nas tuas olheiras mas não te ia mentir para te fazer sentir melhor, e tu sempre soubeste que eu não ia ser capaz.
Peço-te agora que não mandes a proxima carta num envelope de gelo aguçado. As minhas mão ainda não recuperaram. Não olhes a luz do meu quarto hoje, olha o céu que eu nele te beijarei.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Querido Pedro,
Lamento quebrar a bolha onde te refugiaste, mas eu não preciso de te acenar com absolutamente nada. Tu é que vais fazendo questão de realçar quão maravilhosa é a Sofia, esperando que me cale e sorria! Nunca fui a mulher bibelot, não é agora que vou começar.
Dizes que o Carlos não te interessa, como te passou pela cabeça que me poderia interessar se irias estar com a Sofia, a Maria,a Antónia ou qualquer outra das tuas muitas aventuras e ex-namoradas?
Não sejas ridículo e não me venhas com moralismos, conheço tão bem o Carlos como tu conheces a loira que esteve no outro dia (noite) no teu apartamento.
Não te vou esquecer em 4 dias, nem nunca. Sabes disso e ainda assim insistes em meter o dedo na ferida! Eu só tentei seguir em frente, repetir aquilo que era antes do sentimento que veio contigo.
Não me interessa se passaste um serão agradável com a Sofia, só me interessa que não tenhas conseguido caminhar na fonte, não me desiludiste, fiquei triste, só isso... mas espero que um dia o consigas fazer.
Como está a tua família? Fico feliz por terem reagido melhor do que a minha. A minha irmã tem passado cá por casa para me relembrar que não me livro deles assim tão facilmente. O Gui já começa a articular palavras, devias vê-lo, está tão engraçado! Mando-te em anexo o número da Avó Matilde, para que possas falar com ela e sossegá-la.
Não quis a luz do teu quarto acesa, a raiva que a tua última carta que causou afastou-me da janela e agarrou-me ao pedaço de chão, ao fundo da cama, que me costuma embalar nestas horas. Passei a noite em claro a pensar e a ver o fumo do meu cigarro desvanecer-se no ar. Fez-me bem, apesar da fatiga consequente.
Estou cansada Pedro. Já nem me reconheço ao olhar-me no espelho. As olheiras denunciam a vida pouco saudável que tenho levado, tudo em mim perdeu o brilho, até a farta cabeleira ruiva que adoravas parece cansada. Estou farta de mim, preciso de um novo eu.
Não consigo dizer-te mais nada, estou triste e em farrapos, despeço-me com os olhos fechados, sentindo o teu beijo pousar na minha testa.